quinta-feira, 4 de julho de 2013

HEY YOU > Programa Espetáculo

(excerto texto programa do espectáculo: 
"HEY YOU - desculpem o incómodo, estamos a tentar mudar o mundo"
por Diogo Martins)

"No future, no future… Cada novidade técnica ou artística vem sombreada por um “tom apocalíptico”, diria Derrida. O medo do desconhecido agudiza um tremendo fascínio pelo luto nostálgico: as pessoas sempre gostaram de se queixar para se sentirem insubmissas face a um presente que não entendem. Em tempos, fotografar equivalia a prostituir a aura dos acrílicos. Coitado do pintor, coitada da arte! Em tempos, falar de televisão e ouvir jazz faziam crer que a humanidade estaria domesticada, com fios elétricos ligados ao cérebro, sugando-lhe vampiricamente a consciência crítica (primeiro Adorno, mais tarde o Matrix). Em tempos, o rock seria o declínio da civilização as we know it. Depois pensou-se que talvez não, que o rock era interventivo, era política contestatária em riffs de guitarra contra a política institucional, temendo-se que o pop fosse, afinal, a desafinada orquestra do fim do mundo… E quando Kurt Cobain premira o gatilho, muitos choraram por mais um prenúncio do fim: a aura do punk revelou-se altamente inflamável, cinicamente infalível, uma desilusão messiânica. O mundo está viciado em crises para não saber o que é viver sem elas. No future, no future…
Giorgio Cesarano, em A Insurreição Erótica, escreveu: Quando a esquizofrenia é uma condição do social, cada um vê-se viver sentindo-se morrer. Cada caso é um caso e cada contexto legitima um determinado conjunto de plissagens, aluviamentos, de territorializações e desterritorializações, em termos deleuzianos: ser punk em 1960 era uma válvula de escape que, vivida à flor da pele, parecia dar corpo às utopias de sempre, visando enferrujar a máquina capitalista, nem que fosse só cuspindo para cima das suas engrenagens. Ser punk, hoje, é um código de barras: as portas do shopping abrem-se automaticamente, poupando-nos os músculos para que não sintamos as mãos cansadas na hora de puxar o cartão e comprar o casaco de cabedal, as botas de militar, as correntes e um punhado de piercings (até mesmo a ganga das calças vem já rasgada; a rebeldia é um produto da confeção, não um estado de espírito). Cobain acreditava que a esquizofrenia era combatível pela música, mas se a música devém esquizofrénica – e se isso a torna lucrativamente rentável – é porque ficou a dar tareias a ela própria, sem nunca (se) magoar a sério. O sonho de mudar o mundo pela arte não passa disso: de uma “falsa consciência ideológica”, segundo Peter Sloterdijk, que pensa nos amanhãs porque o presente é sufocantemente próximo para poder ser posto à margem de nós próprios, contemplado e, com sorte, corrigido. E não será isso que, hoje, nesta pós-modernidade líquida, nos querem fazer crer: que é preciso sacrificar a demência do presente e pensar apenas na esperança de um futuro melhor, altura (hoje enevoada) que nos fará dizer, em retrospetiva, que tudo isto valeu a pena? No future, no future – uma queixa e um apelo que, hoje, não serão mais do que açúcar aos ouvidos de quem espezinha o presente e nos anonimiza em colunas ou gráficos do Excel?
A esquizofrenia é mais ou menos esta: vender a tirania do futuro e alimentar epifanias da arte como se isso fosse o derradeiro bálsamo para cicatrizar um mundo duramente magoado. Desculpem o incómodo, mas gostaria imenso de vos falar da oitava maravilha do mundo: o bom senso. Não existe um amanhã se não houver um hoje. Não existe um amanhã se não houver, na própria fisiologia emancipada de desígnios divinos, nestas células que criam imagens e recheiam o sangue com sonhos, a certeza de que nós próprios somos o lugar que habitamos pelo simples facto de existirmos. Deleuze ergueu todo o seu complexo sistema do desejo a partir da iminência (e imanência) mais crua: a biologia do homem. Hoje querem-nos fazer crer que podemos prescindir de existir agora para futuramente sermos recompensados com uma existência plena. TPC: como ser pai de dois filhos que serão futuramente homens e mulheres, se antes de ser pai eu não tenho direito a ser, só a ser? A humanidade fica cara: afinal de contas, somos os 99% e ocupamos demasiado espaço, comemos demasiada fruta, somos demasiado chatos. É normal, como disse Mia Couto, que há quem tenha medo que o medo acabe. E por isso empanturram-nos com manuais de autoajuda, mais o medo das pandemias e a certeza de que nascemos todos com algum defeito insanável (a marca de Caim é o logótipo do nosso crime; nem mesmo o Harry Potter lhe escapa, com o seu sinal cravado na testa e tanta magia negra à sua volta): liga a televisão, senta-te, espera pelos anúncios, compra isto, compra aquilo, a sério, lava-me esses dentes com Colgate ou arriscas-te a ser infeliz para o resto da vida, sem emprego nem namorada e com muito mau hálito. Nem a tua mãe gostará assim taaaanto de ti… O medo é o maior trunfo da política (a.k.a. economia: procure as diferenças entre uma e outra; se não houver qualquer diferença a assinalar, tente mais tarde, e assim sucessivamente, até desistir de uma vez por todas). Note do self: há um 1% de gente neste berlinde azul e verde do universo com muito medo que o medo acabe…"


(continua)

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